A guerra possui um cheiro específico. Quem esteve lá, nos contrafortes dos Apeninos, jamais esquece. Não é apenas o odor da pólvora ou do sangue fresco que encharca a farda verde-oliva. Em Montese, durante aqueles dias fatídicos de abril de 1945, o ar carregava uma mistura densa e repugnante. Era o cheiro de “fermentação intestinal”. Esse aroma adocicado e nauseante emanava das enfermarias improvisadas, fruto dos ânus artificiais feitos às pressas em homens com o abdômen rasgado por estilhaços. Ali, naquelas tendas onde a vida tentava desesperadamente vencer a morte, a realidade não tinha o glamour dos filmes. Era crua. Era suja. Era humana.
Imaginem a cena. O cenário não é um hospital asséptico de brancura imaculada. Os alojamentos dos hospitais avançados eram montados onde a guerra permitia, fosse numa cidade bombardeada ou no meio do campo. A lama, aquele inimigo onipresente que os italianos chamavam de “fango”, não respeitava nem a sacralidade das salas de cirurgia. Era sobre esse barro viscoso que se abriam tóraxes e se amputavam membros. O cirurgião operava com as botas imersas na sujeira, lutando contra a infecção com a única arma que parecia divina naquelas paragens: a penicilina.
Aquele pó amarelado era saudado como “o milagre”. O espírito de Fleming parecia pairar sobre as macas, derrotando a virulência dos micróbios que, em outras guerras, teriam ceifado milhares de vidas por gangrena. Mas a penicilina tinha suas exigências. Ela precisava de frio. E o frio, paradoxalmente, era um artigo de luxo nos postos mais avançados.
Vamos acompanhar o trajeto de um soldado ferido. A “linha de montagem” da sobrevivência começava ali, no buraco da trincheira, onde o padioleiro, verdadeiro anjo da guarda sem asas, recolhia o combatente caído. No primeiro posto, recebia sulfa em pó sobre a ferida cruenta e um curativo oclusivo. Se o sangue jorrasse de uma artéria, um garrote tentava estancar a hemorragia. Se a dor fosse suportável e a consciência permitisse, engolia comprimidos de sulfa ali mesmo, na lama.
A viagem continuava em ambulâncias que sacolejavam por estradas esburacadas até o Posto de Tratamento Divisionário. Ali, a medicina de guerra mostrava sua face mais técnica e, por vezes, mais fria. Era o local da grande triagem. Médicos exaustos, com olheiras profundas, precisavam decidir rápido. Quem podia ser recuperado em cinco dias ficava ali. Quem precisava de cirurgia complexa seguia para a retaguarda. E havia aqueles, os intransportáveis, cujas lesões graves no ventre ou no tórax exigiam intervenção imediata para não morrerem no caminho.

Nesse posto intermediário, a falta de eletricidade impunha limites cruéis. Não havia geladeiras. E sem geladeiras, não havia sangue conservado nem a milagrosa penicilina. O que restava aos médicos para combater o choque hemorrágico que drenava a vida dos jovens brasileiros? O plasma. O plasma seco, reconstituído na hora, era o substituto possível, o paliativo que mantinha o coração batendo até que o ferido pudesse chegar a um hospital com gerador e refrigeração.
Quando o ferido finalmente alcançava o 32nd Field Hospital ou o 16th Evacuation Hospital, a cirurgia assumia um caráter industrial e urgente. O Dr. Alfredo Monteiro, o Dr. Oswaldo Luiz do Rosário e tantos outros cirurgiões trabalhavam em turnos estafantes. Mas a técnica ali era diferente da paz. Nada de costurar a pele bonitinha. A ordem era o desbridamento rigoroso. Retirava-se tudo o que estava morto, limpava-se a sujeira da granada, suturavam-se os músculos e as aponeuroses, mas a pele ficava aberta. Fechar a ferida seria criar uma estufa para os germes anaeróbios, aqueles que crescem sem ar e matam em silêncio. Só o rosto e o couro cabeludo, por serem muito retráteis, ganhavam o privilégio da sutura imediata. O resto ficava aberto, esperando um segundo tempo, dias depois, na segurança de um hospital de base em Livorno.
Em Montese, a carnificina atingiu seu ápice. Foi o episódio mais sangrento para as armas brasileiras. Em apenas quatro dias, de 14 a 18 de abril, o maciço cobrou seu preço: 34 mortos e 382 feridos. As mesas de operação não esfriavam. O Batalhão de Saúde viu dez de seus homens tombarem enquanto tentavam salvar outros. No segundo dia de combate, o fluxo era tão intenso que 137 feridos foram atendidos em apenas 24 horas. Uma linha de produção de dor e esperança, onde a eficiência técnica era a única forma de compaixão possível.
Havia momentos em que a medicina precisava ser brutal para ser salvadora. Na Companhia de Tratamento, os cirurgiões Tales Miranda e Edgard Caldas Barbosa muitas vezes tinham que terminar o serviço que a granada alemã começara. Um dedo pendurado por um fio de pele, uma mão esfacelada que impedia o transporte, precisavam ser amputados ali mesmo, sem cerimônia, para que o homem pudesse seguir viagem e viver. Ligavam-se artérias sangrantes às pressas, garantindo a hemostasia necessária para que o soldado não se esvaísse em sangue dentro da ambulância.
E no meio desse caos, a figura humana do médico brasileiro se destacava. Havia o Dr. Oswaldo Luiz do Rosário, um carioca espirituoso que usava o humor como escudo contra o horror. Ele contava histórias, inventava piadas sobre a artilharia fazendo “miau miau” por neurose de ter bombardeado Vergato. Era a profilaxia da mente, tão vital quanto a assepsia da carne. O riso, naquelas circunstâncias, era um medicamento que não vinha em frascos.
A inovação nascia da necessidade. Quando o frio congelava os pés dos soldados nas trincheiras, a criatividade brasileira entrava em ação. Penas de galinha ou jornais eram colocados dentro das galochas para criar isolamento térmico. O próprio médico narrador, sofrendo com dores nos pés durante as longas cirurgias em pé, trocou os coturnos militares por pantufas italianas dentro das galochas, encontrando ali o alívio que a logística militar não fornecia.
O 15th Evacuation Hospital em Corvela e depois o 38th em Marzaboto viram essa procissão de corpos quebrados. Eram estruturas móveis, prontas para serem desmontadas e seguirem o avanço da tropa rumo ao Vale do Pó. Mas a marca deixada naqueles profissionais foi eterna. Eles viram a “glória” da guerra despida de seus uniformes de gala. Viram o homem reduzido à sua fragilidade biológica, dependendo de um frasco de plasma e da habilidade de um cirurgião coberto de lama para ver o sol nascer mais uma vez.
A história registra os generais e as estratégias. Mas quem segurou as vísceras dos heróis foram esses homens e mulheres de branco — ou melhor, de verde-oliva manchado de vermelho. Eles transformaram estábulos em centros cirúrgicos, usaram o improviso como método e a coragem como anestésico. O matadouro de Montese não foi apenas um local de morte. Foi, acima de tudo, o palco onde a medicina brasileira, com seus recursos limitados e seu coração gigante, operou milagres no atacado, provando que, mesmo no inferno, a mão humana ainda pode curar.