Um mergulho na rotina perigosa dos homens de transmissões da FEB em Porreta Terme. Baseado no relato do General Helio Richard, o artigo explora o custo humano de manter as comunicações sob fogo inimigo em 1944.
Helio Richard não tinha o perfil do guerreiro talhado em pedra que os monumentos costumam eternizar. Natural de Abaeté, nas Minas Gerais, ele pertencia à turma de 1938 da Escola Militar do Realengo e trazia consigo o pragmatismo dos engenheiros. Era um homem técnico, um oficial que, antes de ver a cor da neve italiana, passara pelos Estados Unidos, em New Jersey, aprendendo a lidar com a modernidade dos rádios e telefones na Eastern Signal Corps School. Ali, entre manuais grossos e a disciplina rígida dos americanos, ele se preparou para uma guerra que imaginava ser feita de engrenagens e frequências. Mas a Itália, com suas montanhas e sua miséria, ensinaria que a guerra é feita, sobretudo, de carne e osso.
Quando a Companhia de Transmissões da Força Expedicionária Brasileira se instalou nos Apeninos, Helio Richard ocupava a função de Subcomandante, ou o “executivo”, como preferiam os americanos. A unidade montou acampamento em Porreta Terme, uma pequena cidade de águas termais encravada nas montanhas. O quartel-general improvisado era o que restara do maior hotel local, um prédio castigado por bombardeios anteriores, onde as paredes ruídas expunham a violência dos combates passados. A vantagem daquela ruína era suas partes subterrâneas. Ali embaixo, protegidos do aço que caía do céu, os mecânicos instalaram a oficina de manutenção e seus dormitórios.
Para quem trabalhava no subsolo, consertando rádios e ajustando frequências, a guerra tinha o cheiro de óleo e o som abafado das explosões distantes. Mas para os homens responsáveis por levar a voz do comando até a ponta da linha, a realidade era crua e desabrigada. A região era um emaranhado de fios. Cabos americanos, alemães, italianos e brasileiros cruzavam a paisagem, pendurados em árvores, postes ou simplesmente jogados na vegetação quando não havia suporte. Formava-se uma maçaroca indescritível de condutores elétricos que, não raro, era estraçalhada pelas lagartas dos carros de combate.
Consertar aquele caos era tarefa para os fortes. Quando a linha rompia, era preciso sair. Fosse dia ou noite, com chuva ou sob um metro de neve, as turmas de construção de linhas deixavam o abrigo. O oficial Helio Richard observava o sofrimento daqueles homens que não tinham o privilégio de um teto quando a comunicação silenciava.
O batismo de fogo da unidade não tardou e cobrou um preço alto. Ocorreu logo no segundo dia após a chegada a Porreta Terme. A missão parecia rotineira para os padrões do front: levar uma estação de rádio para o II Batalhão do 6º Regimento de Infantaria, que já ocupava suas posições de combate. Foram designados para a tarefa o Tenente Antônio Carlos Sequeira e o Sargento Assad Feres, um radioperador de habilidade ímpar, cujo nome ficaria gravado na memória de Richard para sempre.
Eles avançaram com a viatura Dodge, modelo Comando, pelas estradas sinuosas da Itália. Quando se aproximavam do destino, o ar sibilou. Granadas de morteiro, a artilharia de bolso da infantaria inimiga, encontraram o alvo. O veículo foi atingido. Naquele instante, a comunicação definitiva foi cortada. O Sargento Assad Feres tombou ali mesmo. Era a guerra se apresentando sem cerimônia, transformando um operador técnico em mais uma baixa nas estatísticas do conflito.
A reação ao incidente revelou o abismo cultural entre os brasileiros e seus aliados do norte. O Sargento André, movido por um senso de responsabilidade que beirava a inocência, organizou o resgate da viatura avariada. Trouxe o veículo de volta, arriscando a própria pele e a de seus companheiros. Para um oficial americano, aquilo seria inconcebível. Eles jamais colocariam a vida de um soldado em risco por causa de uma máquina, afinal, caminhões podiam ser substituídos, homens não. Mas o brasileiro, acostumado à escassez, via no material um bem precioso que não podia ser abandonado ao relento.
A morte rondava Porreta Terme com a pontualidade de um relógio. A artilharia alemã tinha a cidade sob sua mira e mantinha uma rotina macabra de bombardeios. Eram três sessões diárias, apelidadas ironicamente pela tropa de café, almoço e jantar. Ninguém estava imune, nem mesmo quando a missão era administrativa.
Numa tarde cinzenta, Helio Richard deveria seguir para a retaguarda, na cidade de Pistóia, acompanhado dos Tenentes Gernes da Silva Costa e Afrânio de Viçoso Jardim. O destino, porém, interveio na forma de um mal-estar. Richard sentira o estômago revirar após o almoço e, incapaz de suportar os solavancos da estrada, decidiu ficar. Passou as ordens e observou os companheiros partirem.
O jipe arrancou, com o Tenente Gernes ao volante. Mal haviam manobrado para pegar a estrada principal quando o “almoço” alemão foi servido. Uma granada explodiu exatamente onde o veículo passava. O estrondo sacudiu a praça. Richard, esquecendo a própria dor física, correu em direção à fumaça. Encontrou Gernes tentando sair do jipe, o corpo marcado por múltiplos ferimentos. Afrânio permanecia caído no interior do veículo, atingido por estilhaços, um deles alojado na coluna vertebral.
A cena na praça era de um horror grotesco. Ao redor dos oficiais feridos, civis italianos também gemiam e sangravam. A fome, aquela companheira constante da população local, os levara até ali para revirar o lixo do acampamento brasileiro em busca de restos de comida. Na ânsia por um pedaço de pão ou borra de café, cinco ou seis deles foram ceifados pela mesma explosão que atingiu os militares. Era a face mais cruel do conflito: a mistura de miséria, inocência e pólvora.
Os feridos foram evacuados para um pequeno hospital em Valdibura. Lá, a medicina de guerra operava seus milagres e suas tragédias. O Tenente Gernes chegou em estado crítico, considerado um caso perdido pela triagem inicial. Foi deixado num canto, à espera do fim inevitável. Mas a teimosia brasileira, personificada num médico civil convocado, recusou-se a aceitar o óbito antecipado. O doutor tomou as dores do caso, realizou procedimentos experimentais e, contra todas as probabilidades, arrancou o tenente dos braços da morte.
Naquele mesmo hospital, a humanidade tentava respirar. Ao lado dos brasileiros destroçados, havia um militar alemão ferido. Não era mais o inimigo, o monstro sem rosto que disparava morteiros. Era apenas mais um homem quebrado, recebendo o mesmo tratamento, os mesmos cuidados. Gernes, ao saber da presença do adversário no leito vizinho, teve o ímpeto da raiva, quis levantar-se para tomar satisfações, mas o corpo não obedecia. Com o tempo, a fúria cederia lugar à compreensão silenciosa de que, numa cama de hospital, as fardas perdem a cor e a dor fala um idioma universal.
Helio Richard sobreviveu para contar essas histórias. Viu a tecnologia americana, o improviso brasileiro e o sofrimento italiano. Mas, acima de tudo, testemunhou o preço pago para que uma simples mensagem pudesse trafegar de um ponto a outro. Em Porreta Terme, as linhas de comunicação foram mantidas operantes não apenas pela eletricidade, mas pelo sangue de homens como Assad Feres e pela coragem de tantos anônimos que, sob a neve, garantiram que a FEB jamais ficasse muda.
Fonte: Historia Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial
OBS: Imagens criadas com Inteligência Artificial


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