A guerra possui uma matemática cruel e fria onde a contabilidade é feita em vidas humanas e o saldo final é quase sempre a dor. Mas existem momentos em que a lógica do campo de batalha é subvertida por algo que transcende o instinto de conservação. Imaginem um cenário onde o céu é cinza, a terra é lama e o ar é cortado pelo zumbido letal das metralhadoras alemãs. Estamos em Monte Castello. É ali que a história de um homem comum se transforma em um monumento à resistência humana. Não falaremos de generais debruçados sobre mapas ou de estrategistas seguros em seus abrigos. Vamos falar daqueles que não portam fuzis. Vamos falar dos homens que correm em direção à morte armados apenas com uma braçadeira da Cruz Vermelha e uma coragem que beira a insanidade.
O padioleiro é uma figura solitária na multidão de combatentes. Enquanto a infantaria busca proteção, cava buracos e procura o ângulo perfeito para o tiro, o padioleiro precisa se expor. Ele é o alvo mais visível e paradoxalmente o mais desarmado. Sua missão não é tirar vidas, mas arrancá-las das garras da morte. E foi nesse teatro de horrores que o soldado Martins Afonso dos Santos escreveu seu nome na história, não com tinta, mas com o próprio sangue.
O ataque a Monte Castello não foi um passeio militar. Foi um massacre metódico orquestrado pelas defesas germânicas entrincheiradas no alto, com visão privilegiada de cada movimento brasileiro lá embaixo. As “máquinas infernais” dos alemães, apelido justo para as MG-42 que cuspiam mais de mil tiros por minuto, varriam o terreno. Quem levantasse a cabeça, morria. Mas os feridos gritavam. E onde há um grito de dor de um “pracinha”, há um padioleiro que se levanta para atender.
Martins Afonso era um desses anjos sem asas. Ele corria pelo terreno acidentado, escorregadio, onde a bota afundava e o equilíbrio era um luxo. O som da batalha era ensurdecedor, uma cacofonia de morteiros e gritos. Em um desses deslocamentos, a sorte lhe virou as costas. Ou talvez a mira alemã tenha sido precisa demais. Um projétil o atingiu. O impacto foi na região glútea. Quem entende de anatomia e balística sabe que um ferimento nessa área é incapacitante. A dor é lancinante, o sangramento é profuso e a mobilidade das pernas fica comprometida pela dor que irradia a cada passo.
A doutrina militar e médica é clara nessas situações. O ferido torna-se um “baixa”. Ele deve ser evacuado imediatamente. Ele deixa de ser o salvador para ser o salvo. Martins Afonso dos Santos, contudo, decidiu rasgar o manual.
Ao sentir o metal rasgar sua carne e o sangue quente escorrer pela perna, misturando-se à lama fria da Itália, ele teve a opção de parar. Poderia ter se deitado, pedido socorro e aguardado a sua vez de ser levado para a retaguarda, para a segurança de uma enfermaria, para o alívio da morfina. Mas ele olhou ao redor. Viu seus companheiros caindo. Viu corpos despedaçados que ainda guardavam o sopro da vida e precisavam ser carregados para longe dali.
O que acontece na mente de um homem nesse instante é um mistério que a psicologia tenta explicar, mas que só a alma compreende. Martins Afonso recusou a evacuação. Ignorou a ordem natural do corpo que gritava por repouso. Ele se levantou.
Imaginem o esforço físico. Carregar uma padiola exige força bruta. É preciso levantar o peso de um homem adulto, muitas vezes inconsciente, somado ao peso do equipamento, e correr por um terreno íngreme e lamacento. Agora, imaginem fazer isso com um rombo na própria carne. A cada passo, a ferida protestava. A cada vez que ele se abaixava para erguer um camarada, o músculo rasgado ardia como se estivesse em brasa viva. Mas ele continuou.
Ele foi e voltou. Uma vez. Duas vezes. Não sabemos quantas viagens ele fez através daquele corredor de morte, mas sabemos que ele não parou enquanto suas pernas obedeceram. Ele se tornou uma máquina movida não por combustível, mas por uma solidariedade primitiva e poderosa. Ele via no rosto sujo de terra dos feridos a sua própria face. Deixar um companheiro para trás era uma opção que não constava em seu vocabulário, mesmo que isso custasse a sua própria integridade física.
Os relatos dão conta de que ele trabalhou até a exaustão absoluta. Não foi apenas o ferimento que o derrubou. Foi o esgotamento total de suas reservas energéticas. Martins Afonso dos Santos doou cada gota de glicogênio, cada fibra muscular, cada batida de seu coração para aqueles que precisavam dele. Ele só parou quando o corpo entrou em colapso, quando a perda de sangue e o esforço sobre-humano desligaram sua consciência ou suas forças motoras.
Esse episódio nos obriga a uma reflexão profunda sobre a natureza do herói brasileiro na Segunda Guerra. Não estamos falando de super-homens de histórias em quadrinhos. Estamos falando de gente simples, vinda dos mais diversos cantos do Brasil, que se viu jogada no centro da maior tragédia do século XX. Martins Afonso não buscava medalhas. Quem está com uma bala no corpo não pensa em honrarias futuras. Ele pensava no agora. Pensava no outro.
A imagem desse padioleiro, sangrando e mancando, mas segurando firme as alças da maca sob o fogo inimigo, é o retrato mais fiel da Força Expedicionária Brasileira. É a prova de que a carne humana é frágil, rasga-se fácil, sangra muito, mas o espírito que habita essa carne pode ser mais duro que o aço dos blindados e mais resistente que a pedra de Monte Castello.
As “máquinas infernais” alemãs podiam disparar mil vezes por minuto, podiam ceifar vidas em escala industrial. Mas elas não podiam fabricar a compaixão. Elas não podiam entender o que leva um ser humano a ignorar a própria dor para salvar o outro. A tecnologia da morte encontrou uma barreira instransponível na teimosia da vida representada por Martins Afonso.
Hoje, ao olharmos para trás, para aqueles dias de 1944 e 1945, é fácil nos perdermos nos grandes números e nas estratégias geopolíticas. Mas a verdadeira história da guerra é feita desses microssegundos de decisão. O instante em que Martins Afonso disse “não” ao seu próprio instinto de sobrevivência e disse “sim” ao dever de fraternidade. Ele transformou sua dor em movimento. Transformou seu sangue em combustível.
O soldado Martins Afonso dos Santos foi evacuado eventualmente, quando não podia mais ficar de pé. Mas a marca que ele deixou naquele terreno encharcado não foi apagada pela chuva ou pela neve. Ele mostrou que, mesmo no cenário mais brutal que a humanidade é capaz de criar, a bondade e o sacrifício ainda encontram espaço para florescer. Ele foi um gigante anônimo, um desses brasileiros que a história oficial muitas vezes esquece em notas de rodapé, mas que constitui a espinha dorsal moral de nossa gente.
Sua atitude em Monte Castello permanece como um farol. Um lembrete eterno de que a coragem não é a ausência do medo ou da dor. A coragem é a capacidade de agir apesar deles. É a capacidade de carregar o peso do mundo, ou o peso de um irmão ferido, mesmo quando os próprios ombros já não suportam mais nada. Martins Afonso não precisou disparar um único tiro para vencer sua guerra pessoal. Ele venceu a morte salvando a vida, e fez isso sangrando, passo após passo, na lama da Itália.

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