Em 9 de janeiro de 1945, a pequena localidade de Madognana, no teatro de operações da Itália, não testemunhava apenas a fúria da guerra entre exércitos; assistia a um horror diferente, mais íntimo e devastador: a falência moral de homens em uniforme. Longe da honra e do heroísmo frequentemente associados aos campos de batalha, a noite gelada daquele dia entrou para os anais da Justiça Militar como o mais grave e repugnante dos crimes, um ato de extrema violência que culminou na condenação à pena máxima de dois soldados do Pelotão de Defesa do Quartel-General.
Os nomes desses homens, A.D.P. e L.B. de M., permanecem indissociáveis da tragédia que se abateu sobre uma família civil. O que deveria ter sido uma missão de ordem e defesa transformou-se numa invasão bárbara, rasgando o frágil tecido de segurança que a presença aliada prometia à população local.
A escuridão da noite forneceu o palco, mas foi a absoluta ausência de humanidade que ditou o roteiro. Armados com metralhadoras, instrumentos de guerra feitos para abater inimigos em combate, os soldados decidiram usá-las para aterrorizar civis. O assalto à residência foi marcado pelo caos imediato: a violência irrompeu no instante em que as armas foram acionadas dentro da casa.
Um dos invasores, num gesto calculado para mergulhar o ambiente num terror incontrolável, desferiu uma rajada de tiros contra a lâmpada. A súbita e total escuridão não era um mero acidente, mas uma estratégia cruel. Em meio ao estrondo dos disparos e ao pânico gerado, ouviu-se o grito brutal de um dos soldados, expressando a intenção nefanda: a ânsia declarada de “pegar a mulher no escuro”. A luz artificial da casa se apagava, mas a escuridão moral dos agressores apenas se aprofundava.
O alvo da perversidade era Giovanna Margelli, uma adolescente de apenas 15 anos. A menor de idade foi arrastada, subjugada pela força e pelo armamento. A metralhadora, que momentos antes cortara o ar com tiros, agora pairava como uma ameaça constante, garantindo que a jovem vítima fosse levada a um dos quartos.
A cena se dividiu em dois palcos de sofrimento: no quarto, consumava-se a violência; à porta, o outro soldado permanecia em vigília, sustentando o cerco de terror com a sua arma de fogo.
Foi nesse momento de desespero que a coragem familiar se manifestou em forma de fatalidade. Leonardo Vivarelli, tio de Giovanna, surgiu na cena. O seu ato de socorro, o instinto de proteger a família invadida, selou o seu destino. O soldado que guardava a porta, sem hesitação e a sangue-frio, acionou a metralhadora. Leonardo Vivarelli foi assassinado com uma saraivada de tiros, tombando sem vida no limiar da casa.
Os relatos dos autos, frios em sua precisão jurídica, mas carregados de tragédia, mostram o nível de depravação alcançado. Mesmo após o assassinato brutal, a violência contra a jovem não cessou. O soldado que cometia o estupro foi alertado pelo companheiro, pelo assassino, de que “já matei um homem”. Essa informação não serviu como freio ou despertador de consciência; ao contrário, aterrorizou a vítima e reforçou a impunidade percebida pelos agressores. O crime sexual continuou.
A frieza dos dois homens atingiu o seu ponto máximo. Consumado o ato por um, eles trocaram de posições, demonstrando uma indiferença espantosa. O corpo de Leonardo Vivarelli jazia inerte na soleira, um trágico testemunho de sangue e de heroísmo familiar. E ali, na presença invisível da morte, o segundo soldado deu sequência à violência contra Giovanna Margelli. Não foi um ato impensado, mas uma sequência de ações calculadas, onde o assassinato se tornou apenas uma etapa para garantir a continuidade do abuso.
Os autos revelam não só o crime, mas a profunda ferida infligida à missão brasileira. O uniforme, símbolo de ordem e libertação, foi transformado em cobertura para a barbárie. Este caso, pela sua extrema gravidade envolvendo o estupro de uma menor e o homicídio subsequente para silenciar uma testemunha e um defensor, ocupou um lugar central nos registos da Justiça Militar na Campanha da Itália.
A Justiça Castrense, operando em condições de guerra, demonstrou rigor. As evidências e testemunhos levaram à condenação dos dois soldados à pena capital, a mais severa prevista no código militar. Embora as instâncias superiores tenham posteriormente comutado a pena, a sentença inicial expressa a absoluta repulsa do corpo judiciário militar diante de tal afronta aos direitos humanos e ao próprio código de conduta das Forças Armadas.
O nome de Madognana tornou-se, assim, um símbolo. Não apenas da luta contra o Eixo, mas da batalha contínua, mesmo entre aliados, para impor a lei e a decência onde o caos da guerra ameaça desmantelar a civilização. A memória de Giovanna Margelli e Leonardo Vivarelli clama por uma reflexão sobre a responsabilidade individual, mesmo sob a égide do serviço à pátria.
OBS: Imagens criadas com Inteligência Artificial

