Acompanhe a missão de reconhecimento da FEB no Vale do Pó, onde a glória da libertação se misturou ao perigo de Piacenza e ao sarcasmo da guerra.
A fase final da guerra na Itália trouxe consigo uma desordem peculiar. Quando as linhas germânicas nos Apeninos finalmente cederam, o conflito transformou-se em uma corrida desenfreada onde ninguém sabia exatamente onde pisava. A infantaria avançava, a artilharia tentava acompanhar e a engenharia, onipresente, tentava abrir caminho no caos. Foi nesse cenário de incertezas que o então Tenente Rubens Mário Brum Negreiros recebeu uma missão que parecia simples no papel, mas que se revelaria uma tragicomédia de erros, sorte e chumbo.
O objetivo era claro e burocrático. O oficial deveria deslocar-se até o Vale do Rio Pó para realizar trabalhos de reconhecimento nas estradas que levariam a Divisão brasileira ao seu destino final. Negreiros identificou as rotas no mapa e partiu com sua pequena comitiva, composta por dois soldados motoristas e cinco sargentos distribuídos em jipes. A guerra de movimento, no entanto, não respeita cartografias. A menos de dez quilômetros do ponto de partida, a realidade impôs seu primeiro obstáculo na forma de uma tropa americana.
Um sargento dos Estados Unidos interceptou o comboio brasileiro com a autoridade de quem controla o tráfego do inferno. O aviso foi direto e frustrante. O militar informou que a passagem estava bloqueada dali em diante, pois havia forças inimigas na região, apontando vagamente para uma casinhola no horizonte. A estrada principal, aquela desenhada com segurança no planejamento, estava interditada pela prudência aliada.
Diante do impedimento, restou ao Tenente Negreiros apelar para a iniciativa que o manual não ensina. Afastou-se do bloqueio e debruçou-se novamente sobre o mapa, decidindo alterar o planejamento inicial. A solução estava nas estradas vicinais, caminhos secundários e poeirentos que cortavam o interior italiano longe das vistas das grandes colunas blindadas. Foi assim que a pequena patrulha da FEB mergulhou no desconhecido, avançando por vilarejos minúsculos, os chamados paese, onde nenhum outro soldado aliado havia pisado.
O que se seguiu foi uma cena digna de um roteiro cinematográfico, onde o perigo cede lugar ao absurdo. Ao entrar nessas vilas isoladas, o grupo não encontrou a resistência alemã, mas sim uma população em êxtase. Cerca de cem pessoas, famílias inteiras que aguardavam o fim do pesadelo, cercaram os jipes brasileiros. Os gritos de “viva o liberatori!” ecoavam pelas ruas estreitas enquanto as viaturas eram soterradas por presentes. Flores, frutas e garrafas de vinho eram atiradas para dentro dos veículos em uma celebração caótica e comovente.
A sorte parecia sorrir para aqueles homens. Logo no início desse desvio improvisado, encontraram um partigiani, um membro da resistência local que conhecia a região como a palma da mão e prestou informações valiosas sobre quais caminhos seguir. Com essa ajuda inesperada, o grupo avançou com uma confiança renovada, embora cercada de ironia. Nos locais onde a inteligência dizia não haver inimigos, eles pululavam. Já nas áreas indicadas como perigosas, o caminho estava livre. A guerra zombava das certezas militares.
O destino final era o Rio Pó, mas para chegar lá era preciso cruzar Piacenza. A cidade era um nó rodoviário vital, um ponto estratégico que precisava ser ultrapassado. Ninguém sabia informar se os alemães ainda ocupavam as ruínas daquele centro urbano. A decisão foi prosseguir. A patrulha entrou na cidade, avançando pelas avenidas destruídas com a tensão de quem caminha sobre vidro. Quando atingiram o meio do trajeto, a festa dos vilarejos anteriores cobrou seu preço.
O silêncio foi rompido por fogo cerrado. Piacenza não estava livre. Tiros de armas pesadas choveram de todos os lados, cercando os brasileiros em uma armadilha mortal. A dúvida paralisante tomou conta do momento. Recuar ou avançar apresentava o mesmo risco de aniquilação. Negreiros optou pela audácia. Ordenou que seguissem em frente. Os motoristas e sargentos, demonstrando uma coragem fria, gritavam para avançar enquanto o chumbo inimigo riscava o ar.
Por um capricho do destino, conseguiram atravessar a zona de morte e alcançar o Rio Pó. Realizaram o reconhecimento previsto e retornaram por um caminho diferente, escapando da ratoeira de Piacenza. A missão, programada para durar um dia, estendeu-se por duas jornadas e meia de incertezas e adrenalina.
O retorno ao acantonamento trouxe o desfecho final dessa ópera bufa. Satisfeito por ter cumprido o dever e sobrevivido, o Tenente Negreiros apresentou-se ao seu comandante de Companhia, o Capitão Lúcio de Moraes Caldas. Com o entusiasmo de quem sobreviveu, relatou ter sido o “libertador” de várias paeses, descrevendo a alegria das populações e apontando para o jipe carregado de presentes, provas materiais da gratidão italiana.
O Capitão Caldas, homem de olhar cético e humor ácido, ouviu o relato e observou as frutas e as flores. Sua resposta foi um banho de realidade fria, desprovida de qualquer romantismo. Ele disse ao subordinado que aquilo era apenas o que havia sobrado da despedida dos alemães. As tropas de Hitler haviam acabado de sair daqueles lugares, levando o que lhes interessava. O que restou, o refugo, foi o que a população entregou aos brasileiros.
Naquela frase sarcástica residia a verdade crua do conflito. Entre os aplausos de “libertadores” e o fogo de metralhadoras, o soldado é apenas um passageiro da história, recolhendo as sobras de uma festa que nunca foi sua. A incerteza é a única companheira fiel, e a glória, muitas vezes, é apenas uma questão de chegar logo após o inimigo ter feito as malas
Fonte: Historia Oral do Exército na Segunda Guerra Mundial
OBS: Imagens criadas com Inteligência Artificial


